sábado, 14 de junho de 2008

O Carvalho

O carvalho

necropolis oak by aniolova

Escreveu e enviou inúmeras cartas, diversas vezes foi ao correio para checar se elas realmente haviam chegado ao seu destino, e confirmou o que temia, todas elas foram devidamente entregues. Mas por que ela não as respondia? Por que não conseguia encontrá-la?

Dias se passaram, semanas, meses, e nem sequer um sinal dela, uma resposta, ou qualquer coisa que indicasse que ela estava viva e bem.

Ele estava cada vez mais preocupado, ela não retornava suas mensagens, e-mails, ligações, nada. Era como se ela simplesmente tivesse desaparecido da face da Terra, e ele tentava resgatá-la, aproximar-se, salvá-la, mas cada vez mais ela parecia apenas um sonho, uma ilusão criada por sua mente, algo que na realidade nunca havia existido, como uma alucinação convincente a ponto de fazê-lo acreditar que era real, palpável.

Estava distante demais, não havia mais controle sobre a situação.

Ele não conseguia entender, fizera tudo certo, sabia que fizera. Comprou as alianças, esperou a hora que lhe pareceu mais perfeita, ela sorria pra ele, estava feliz, eles adormeceram abraçados e felizes como sempre.

Dias depois precisou partir de volta pra sua casa, mas logo ele voltaria, seria apenas por um mês e meio, nada com o qual eles já não estivessem acostumados. Tudo ocorreu como de costume, diversas lágrimas na rodoviária, ele abraçando-a forte enquanto ela chorava, prometendo voltar logo, pedindo que ela fosse forte. Mal sabia que essa seria a última vez que a veria e ouviria sua voz, sentiria seu cheiro, o cheiro de seus belíssimos cabelos ruivos, ou até mesmo o maldito cheiro dos cigarros mentolados dela.

Estava enlouquecendo, preso ao seu trabalho, querendo encontrá-la de qualquer forma, e não conseguindo fazer tanto quanto sabia que era capaz de fazer. Toda a noite antes de dormir pensava em pegar um ônibus durante a madrugada e seguir em busca dela, dos seus perfeitos cabelos ruivos, dos seus olhos verde-acinzentados. Mas não podia, não podia. Então esperançoso tentava mais uma vez ligar pra ela, mandar uma mensagem, mas a resposta era sempre a mesma, caixa postal. E mais uma vez ele dormia preocupado, mal, e amanhecia com enormes e fundas olheiras.

Ela não queria ser encontrada, não queria ser salva, já havia sido quase totalmente engolida por aquele buraco negro que nascera dentro dela. Era fundo demais, e mesmo que esticasse o máximo que pudesse seus braços, talvez não fosse mais possível resgatá-la. E ele sabia disso, mas não aceitava de forma alguma.

Ela precisava lutar, ele precisava encontrá-la, dizer isso a ela, que ele estava ali, que a ajudaria, que tudo ia ficar bem, que a magia do início voltaria a ser real. Ele precisava mostrar a ela que ela tinha força, que merecia ser feliz. Mas ela não deixava que ele o fizesse.

Dias e mais dias se passaram, e junto com eles noites em claro, refeições mal ou não feitas, pensamentos longínquos, medo, preocupação constante, até que finalmente tomou coragem e pediu uns dias de folga para seu chefe a fim de resolver um problema urgente, e os conseguiu obviamente.

Na mesma tarde comprou uma passagem rumo à cidade dela. Finalmente ia ver de perto o que estava acontecendo, ia poder intervir da forma realmente necessária, e lutar pra ajudá-la como ela merecia.

No dia seguinte já havia chegado ao seu destino, pareceu-lhe a viagem mais longa de toda sua vida. Mas agora estava diante da porta do apartamento dela, olhando para fechadura, tomando fôlego antes de bater. Bateu uma, duas, cinco vezes, e ninguém atendia, chamou por ela, nada.
Olhou para suas malas, para a fechadura, pensou em arrombar a porta, mas não demorou muito pra que percebesse que a porta estava destrancada. E foi logo entrando, deixando as malas na porta e correndo em direção ao quarto, temendo o que poderia ver, mas ela não estava lá.

O quarto estava completamente desarrumado, a cama desfeita, milhares de maços de cigarro jogados pelo chão, a escrivaninha tomada de cartas escritas por ele, sim, ela lera todas, mas nunca sequer se dera ao trabalho de respondê-las. Algumas possuíam borrões de tinta, como se tivesse chorado ao lê-las. Ele não entendia.

Aterrorizado caminhou até o banheiro, onde os encontrou, e chorou como uma criança desesperada que acabara de perder a mãe, chorou alto, soluçando. Sentiu-se invadido por um frio imenso que vinha da base de sua coluna até o ponto mais extremo de sua cabeça.

O que ela fizera consigo mesma? Por quê?

Por que cortara todo seus lindos cabelos? Por que havia marcas de sangue no chão do banheiro?

Sentiu suas pernas trêmulas, um vazio enorme, como se tivesse absorvido todo aquele resto de tristeza que ela deixara ali. Sentiu-se sugado por aquela tristeza toda, e como que tentando agarrar-se a algo além daquilo, segurou em suas mãos desesperadamente os retalhos de cabelo que ela deixara na pia do banheiro, ainda tinham o mesmo cheirinho doce, exatamente como ele se lembrava.

Deitou-se na cama por uns instantes, ainda segurando os cabelos que outrora faziam parte do corpo dela, encostou a cabeça no travesseiro que ela costumava usar, ainda tinha seu cheiro, fechou os olhos, e parecia que voltara para aquela noite mágica na qual a pedira em casamento e colocara delicadamente em seu frágil dedo a aliança.

Ouviu o som alto de uma buzina de um carro que o trouxe de volta ao presente. E deu-se conta de que precisava encontrá-la, que não podia prender-se aquela nostalgia toda. Levantou-se bruscamente e seguiu rumo a porta, sem saber exatamente por onde começar a busca, mas sabendo que era preciso apenas um primeiro passo, e que a partir dele, os outros ficariam mais fáceis de serem dados. E assim o fez.

Procurou-a por toda a cidade, vagou o dia e a noite toda por praticamente todas as ruas, até estar completamente exausto e sem saber mais pra onde ir.

Quando finalmente viu diante de si uma ruazinha deserta, com apenas um poste de luz, que iluminava um banco qualquer, no qual pensou em sentar por alguns minutos a fim de descansar as pernas que agora latejavam de dor, bem como seus joelhos e costas.

E ali ficou, olhando ao seu redor as folhas no chão, a sua própria sombra, e pensando nela, em onde poderia estar naquele exato instante, e porque havia desistido tão fácil do amor dos dois. Era tudo tão perfeito entre os dois, não havia falhas e nem mesmo espaços vazios, e isso dificultava as coisas, fazia com que ele não entendesse os motivos dela, com que não aceitasse aquela condição que lhe fora imposta da noite pro dia sem sequer uma satisfação. Era o benefício da dúvida que o atordoava, a incerteza, a eterna incerteza que fazia com que ele se sentisse caminhando no escuro, sem ter nada para se apoiar.

Um gato mexendo em uma folha seca fez com que sua mente voltasse ao presente, e com que ele olhasse para trás e percebesse que estava diante dos portões de um cemitério. Há tempos não entrava em um cemitério, a última vez que o fizera estava com ela, e os dois caminhavam por entre os túmulos discutindo sobre a vida e a morte, e sobre como era linda aquela beleza triste dos cemitérios, parando vez ou outra pra admirar um túmulo e imaginar como seriam aquelas pessoas quando em vida, com que tipos de coisas sonhavam, ou se eram felizes, coisas vagas apenas.

Olhou pras gigantescas e assustadoras pilastras que sustentavam a imponência de dois anjos enormes. Sentiu um forte frio subir pela espinha, mas não forte o bastante pra convencê-lo de que não devia empurrar os portões e adentrar a morada silenciosa.

Empurrou com força os portões, que fizeram um barulho extremamente alto em meio aquele silêncio todo da rua abandonada. Passou seu corpo magro, por entre a fresta aberta do portão e seguiu caminhando calmamente pelos túmulos, olhando para as estatuetas e lápides, ouvindo o silêncio e a brisa leve da noite. Caminhava distraidamente, olhando vez ou outra para o chão, para o céu e as árvores.

Quando avistou um lindo carvalho, imenso, frondoso, com as folhas reluzentes que refletiam o intenso e perfeito brilho do luar, daquela noite sem nuvens e na qual o céu parecia um cobertor cravejado de diamantes.

O carvalho tinha raízes imensas e fortes, além de um tronco rígido e que equilibrava perfeitamente todas aquelas folhas e galhos, distribuídos perfeitamente, ao longo de toda sua estrutura.

Passou um longo tempo admirando cada detalhe do carvalho, boquiaberto com tamanha beleza, equilíbrio e perfeição sob forma arbórea.

Quando finalmente voltou o seu olhar para o lugar em um todo ele viu algo que o deixou realmente intrigado, parecia ser um... um... um maço de cigarros, cigarros mentolados.

“Oh céus não!” Pensou desesperado. “Não, não, por Deus não!” Mas por mais que implorasse pra que aquela visão fosse apenas uma ilusão, uma peça pregada por sua mente cansada, era real.

E não demorou muito para perceber que ao lado do maço, sob a sombra do frondoso carvalho, escondido atrás do imenso tronco, repousava o corpo de sua princesa dos cabelos de fogo, dormia tranqüila. Magra, muito mais magra que o normal, pálida, cabelos tortuosos devido aos cortes impensados. Suas mãos repousavam doces entre os seios, ela ainda usava a aliança. Ele sorriu com o canto da boca ao vê-la no seu dedo.

Tentou abraçá-la, trazer o corpo dela pra perto do seu, assim poderia aquecê-la, salvá-la. Mas foi inútil, não havia mais tempo, apesar de parecer dormir ela devia estar morta há dias. Ele estava em choque, não conseguia sequer chorar, ficou horas em silêncio abraçado ao corpo dela, pensando em uma solução para o insolucionável. Mas não havia nada a ser feito, a chama dos cabelos de fogo da princesa apagara-se, e com ela o brilho de seus olhos.

Após horas ali, percebeu que ao lado dela havia um pequeno pedaço de papel, dobrado exatamente da mesma forma como cuidadosamente ela dobrava os bilhetes que sempre deixava na mala dele.

“Nunca foi amor de menos, era sempre demais, um amor inesgotável, inexplicável, era amor na sua forma mais pura e concentrada, era amor de criança, amor pra uma vida toda.

Talvez você nunca me perdoe ou me entenda, talvez você me esqueça no dia seguinte.

Peço desculpas pelas cartas não respondidas, e por não lhe enviar a única resposta que resolvi dar depois de meses a você. Peço desculpas pelo sumiço, por toda a preocupação e infelicidade que estou certa que causei.

Mas saiba, nunca foi amor de menos, sempre foi amor demais, mas junto com ele medo demais, insegurança demais, saudade demais, distância demais. E tudo tornou-se... insuportável demais. Sinto muito, amor meu.”

Finalmente ele entendera, ainda não conseguia aceitar, não se conformava com a forma como tudo aconteceu, mas entendera.

Ia sentir falta dos cabelos de fogo dela, do sorriso iluminado, do cheiro e da pele macia. Mas nunca ia desistir de tentar sempre lembrar dela da maneira como sempre a via, uma eterna vivente, capaz de captar todo e qualquer tipo de beleza efêmera e eternizá-la. Ele entendera. E isso, naquele momento era o bastante, era o primeiro passo da longa e pesarosa jornada que viria a partir daquele instante.


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Comentários:

Sabe, no momento em que ele senta-se diante dos portões do cemitério e houve, assim como ela, no outro conto, o barulho do gato brincando com a folha seca, cheguei a pensar que, felizmente, ele havia chegado a tempo. Que a cena se passava alguns minutos após a entrada dela no cemitério, no final do conto "Amnésia". Mas, era só uma "ilusão auto-imposta". O mundo muitas vezes nos parece tão cruel em sua forma como trata pessoas que querem ser felizes, que a gente acaba nutrindo um pouco de esperança em ver finais felizes mesmo em ficções que apontam para um final trágico. Criou-se um contraste aqui, entre uma dependente de amor, e um dependente de vida. Entre o desespero incontrolado de sentir-se amada, e a paciência, a duras penas, controlada para que fosse capaz de aguardar um novo encontro, que não veio. O que veio foi um encontro entre presença e ausência. E embora o final tente passar um pouco de esperança, um amor tão grande não deixa nada mais que um vazio imenso no lugar de onde foi arrancado. Triste... 


Rodrigo Ferreira | 16-06-2008 12:23:09
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Ao longo dessa minha vida toda eu aprendi a ver beleza até nas coisas mais tristes. E de certa forma, é esse tipo de beleza uma das mais verdadeiras, pois nessa vida, a tristeza é uma das poucas coisas livre de máscaras. E como você mesmo uma vez me disse Rodrigo, talvez colocar isso pra fora sob forma de texto ajude distanciar essas coisas de mim, coisas que não deixam de ser medos. 


Tati | 16-06-2008 14:29:33 

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