terça-feira, 23 de outubro de 2012

O feto

Fetus por Pon-Pon-Cho



No início era apenas um leve incomodo uma pequena dorzinha causada provavelmente por algo que havia comido. Foi exatamente isso que ela pensou. Mas quando se deu conta, a situação havia se estendido por dias, semanas, e a pequena dorzinha agora piorara exponencialmente e ela mal conseguia andar.

Sentada em sua cama, perdida em pensamentos, repassou cada ação, cada momento, tentando entender o que fizera com que ela chegasse até ali, naquele estado. E era difícil entender, era difícil se lembrar, estava tudo confuso, a dor não ajudava a pensar. Precisava de anestésicos, analgésicos, pílulas, antiácidos, qualquer coisa, qualquer coisa que amenizasse aquilo, qualquer coisa que a ajudasse a pensar, qualquer coisa.

Começou a tombar o corpo devagar, foi deitando-se aos poucos, encolhendo-se, tentando fugir da dor, tentando encurralá-la apenas num canto de si. E por fim, recostou a cabeça no travesseiro e ficou ali, como um feto. Sim um feto, mas um feto sozinho, sem nada mais que o ligasse ao mundo.
Entre muito esforço e uma dor indescritível, ela começou a se lembrar de como chegara ali. E aos poucos a visão era tão clara que teve a sensação de ter voltado a viver no passado.

E lá estava ela, sentada sobre as malas num terminal distante de casa, esperando por ele. Depois disso tudo eram apenas flashes, o beijo, o balanço, ela sentindo-se voar, os dois fazendo amor, os banhos, ele chorando, sua mão no vidro do ônibus, ela chorando, reencontros raros, despedidas dolorosas, o medo, a distância, a distância aumentar, e dor, dor e mais dor, dor e lágrimas. E aos poucos se deu conta de que voltara ao presente, à cama, a posição fetal, as paredes frias do seu quarto, a sua solidão.

Não, não era ele o culpado, era a distância, os sonhos que as poucos foram morrendo, o vazio do apartamento, os medos, a ausência, o buraco, o oco que a habitava. Era a solidão, sempre a solidão. As lembranças, que eram apenas lembranças e nada mais. Era o amor agonizando, lutando com as últimas poucas forças que lhe restava, era a chama que aquecia seu peito apagando-se aos poucos.

Era isso, era por isso que estava morrendo devagarzinho. Era por isso que sentia aquela dor insana, insuportável. E não havia nada a ser feito, nada.

Encolheu-se um pouco mais, e mais, e por fim, com as últimas forças que lhe restava, levou sua mente pra longe, bem longe, numa época em que nem ao menos havia nascido. E ali ficou, como um feto, esperando um dia renascer.

sábado, 20 de outubro de 2012

Folhas ao vento

Folhas ao vento

Colours of the Wind por Andrew Hunter


Apagou inquieta mais uma vez, rabiscou o papel irritada. Não, não e não, estava tudo errado, ela sabia. Como poderia escrever algo decente se não sabia nem ao certo por onde começar, sobre o que falar. Talvez não tivesse nada a dizer, era apenas uma poetisa fracassada.

Suspirou. 'Bons tempos aqueles em que as palavras pareciam transbordar de meu peito rumo as minhas mãos. Doidas por atenção, querendo ser escritas a qualquer custo. Bons tempos'. Suspirou.

Caminhou inquieta pelo quarto, andou durante muitos minutos em intermináveis círculos imperfeitos. Por fim, sentou-se na cama, e após dias, abriu a janela.

Logo de início foi cegada pela luz, não tinha ideia de que já era manhã.

Era uma linda manhã na Terra do Pra Sempre. Os habitantes da aldeia onde morava a poetisa sorriam sem parar, e andavam de um lado para o outro cumprindo orgulhosamente suas tarefas cotidianas, saudando os amigos, parando vez ou outra pra um dedinho de prosa.

O sol iluminava fortemente os Eucaliptos, e o vento da manhã fazia-os dançar de forma sincronizadamente perfeita. Quisera eu ser uma folha ao vento, pensou a poetisa.

Não demorou muito pra que notasse o imenso arco-íris feito de borboletas de todas as cores que existiam. E a magia dos beija-flores, bem como o perfume das flores, o orvalho no capim, o cheiro de pãozinho pronto, o aroma do café, a vida se fazendo em cada milésimo de segundo diante de seus olhos. As pessoas felizes, construindo o seu agora e seu futuro.

Olhou mais uma vez pro pedaço rabiscado de papel. Olhou pra janela.

Pros diabos o papel, a poesia, vou lá pra fora viver, pensou ela. E saiu em direção a porta, abriu um enorme sorriso, cumprimentou os amigos, e ficou brincando de ser folha ao vento.