quarta-feira, 11 de junho de 2008

Amnésia

Amnésia

Foto de Tati in the sky

Estava sentada num banco qualquer em frente a um cemitério qualquer, já não se lembrava mais ao certo como foi que chegara ali. Estava fraca, pálida, magra, olheiras imensas de quem há dias não dormia. Estava com medo de sonhar, precisava ficar acordada, não queria sonhar, recusava-se a sonhar.

A única força que existia dentro dela naquele instante estava empenhando-se em abraçar com força os próprios joelhos e lembrar-se de como fora parar naquele lugar.

Suas lembranças eram como borrões, ou melhor, como fotografias borradas. A casa, o quarto, as cartas, as fotografias cheias de formas disformes, de cores sem cor, pássaros de origami, Ele, mas quem era ele?

Quem era aquele homem deitado em sua cama? De onde ele veio? Ela o conhecia?

Sua cabeça agora sofria de fortes pontadas, pensar naquela pessoa a deixou inconscientemente atordoada. Então decidiu apenas concentrar-se no que havia ao seu redor. Tratava-se de uma rua completamente abandonada, muito mal iluminada, na verdade ela estava sob o único poste que havia ao longo da rua toda. A suas costas estavam os portões do cemitério, imponentes, convidativos. Ao lado dos portões havia duas pilastras com gigantescas estatuetas de anjos, que na verdade apenas indicavam ser anjos devido à presença de asas, caso contrário ela mesma diria que aquelas enormes estatuetas tratavam-se da própria visão da morte sobre camadas de cimento. Observou-as atentamente por alguns segundos, e seus olhos pareciam reais, o que fez com que logo ela desviasse os dela com medo e voltasse a se concentrar em como fora parar naquele lugar.

Não demorou muito pra que percebesse que estava toda suja, arranhada, roupas rasgadas, toda despenteada, como se há dias estivesse ali naquele lugar sem nem mesmo se dar conta disso.
Não demorou muito pra que as "lembranças fotográficas" voltassem a atordoá-la. O banheiro, as unhas, os tornozelos sangrando, a pia do banheiro, a escrivaninha cheia de papéis, e Ele, o desconhecido.

Não fazia nenhum sentido, nada fazia sentido.

Escutou um ruído ao seu lado que a trouxe de volta pra realidade, assustou-se, mas era apenas um gato brincando com uma folha seca, só isso.

Devia haver uma forma de ligar as coisas, de conectar todos aqueles borrões em uma coisa só, de transformar tudo aquilo em algo mais dinâmico que meras imagens picadas em sua mente.
Apalpou o bolso de sua calça, eles ainda estavam ali, os velhos cigarros de menta. Apalpou o outro bolso e encontrou o isqueiro. Tirou um cigarro de dentro do maço, acendeu-o calmamente, tragou profuuuuundamente, soltou a fumaça de-va-gar, beeem devagar. Apoio a mão com o cigarro no joelho, abaixou a cabeça e analisou os cortes de seu tornozelo friamente, tentando lembrar se ela mesmo os fizera.

Tragou mais uma vez o cigarro, toda aquela menta a acalmava, a ajudava pensar melhor, mente aberta, levemente entorpecida. Sim ela fizera aquilo, fizera friamente num acesso de raiva, como um animal, irracional, passional. Partes dos borrões começavam a se unir, e agora ela via, via a si mesma sentada sobre a cama, olhos vermelhos de choro e com enormes olheiras, inúmeros maços de cigarros sobre o criado-mudo e espalhados pelo chão, estava ansiosa, impaciente, olhando para as próprias unhas, e sentindo a intensa dor que a consumia e corroia como o mais forte de todos os ácidos, e então ela o fez, rasgou todo o tornozelo, numa tentativa insana de amenizar as dores internas, de distrair a mente do real problema, rasgou uma, duas, dez vezes...

Descontente caminhou até o banheiro, pegou a navalha, e cortou boa parte dos cabelos. E saiu correndo, batendo portas, passando por ruas e mais ruas, apenas borrões e figuras desfiguradas, sem saber ao certo pra onde ir, inúmeras vezes tropeçou, caiu e levantou-se e continuou correndo, fraca e desesperadamente, até tudo não passar de um buraco negro imenso dentro dela, e de muros e mais muros ao seu redor.

E agora, estava sentada ali, lembrando-se finalmente como fora parar lá, como chegara diante daquele cemitério, e finalmente entendeu que inconscientemente seu corpo a levara até ali porque sentia que estava morrendo. Seus pés a levaram para lá porque todo o resto estava ruindo.

Mas ainda havia coisas que não faziam muito sentido. Quem era Ele? Quem era o homem na sua cama?

E mais uma vez lá estavam elas, as intensas pontadas na cabeça, agora acompanhadas de uma sensação de frio, e tremores.

Por que não conseguia se lembrar?

Talvez se acendesse mais um cigarro... Quem sabe a menta... Quem sabe...

E ali sentada à meia luz, tirou mais uma vez o maço de cigarros do bolso, e deu-se conta de que havia apenas mais dois cigarros, tombou de leve o maço para tirar o cigarro que parecia estar preso, e então em sua mão caiu algo que estava bem longe de ser um cigarro...

Ela olhou atentamente para ela, parecia familiar, mas não conseguia entender porque estava justamente ali, naquele maço amassado de cigarros. Ela brilhava intensamente, a espera de cumprir o seu papel e finalmente encaixar-se no dedo ao qual pertencia, mas não foi isso que aconteceu.

A dona da aliança acendeu mais um cigarro, tragou com força e soltou a fumaça devagar, e analisou o anel, bem como o que havia escrito em seu interior "Por todo sempre".

Mais alguns borrões agora tomavam formas, e finalmente as respostas vieram por completo.
Ele estava diante dela, ajoelhado em sua cama, olhando-a nos olhos firmemente, haviam acabado de fazer amor, o quarto estava repleto de velas, quando ele caminhou até a sua mala, e a pegou, ajoelhou-se mais uma vez diante dela, e era tão intenso o amor, como o amor de dois deuses, e então ele pegou sua mão, e disse "Por todo sempre, assim que deve ser".

Ela sorriu, estava inundada de felicidade.

E ficaram ali abraçados, até finalmente dormir.

Depois disso se lembrava de muito pouco, apenas coisas como a distância, a insegurança, o medo, a rotina, dia após dia sentindo-se sozinha e recorrendo a lembranças. E isso a fez entender porque pensar nele fazia com que ela se sentisse tão fisicamente mal, porque ele era a droga, o vício, ele era a loucura e a razão, ambas fundidas em um só ser.

Acendeu seu último cigarro.
Lembrou do cheiro dele, da pele, da voz.

Ela definitivamente enlouquecera com tudo aquilo, com todo aquele amor guardado pra si, ela ficara louca e amarga.

E estar naquele quarto, naquela casa, cercada de coisas que lembrava cada vez mais e mais o amor deles estava matando-a, ela estava morrendo, e por isso tentou contra si mesma, por isso seus pés a conduziram a aquele lugar.

Ela finalmente entendera tudo, ela não estava ali por acaso.

Levantou-se devagar, seguiu rumo aos portões do cemitério, olhou pras duas imponentes e gigantescas estatuetas, empurrou os portões devagar, e seguiu rumo a liberdade.




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Comentários:

Sabe o que seria interessante? Uma versão da história sob o ponto de vista do Ele/droga, e como Ele encarou tudo o que ocorreu a ela. No início do texto, com a atenção que a narrativa dá ao cemitério, fui levado a crer que o Ele estava enterrado ali, ou em qualquer outro cemitério, o que, no final das contas, daria na mesma, já que seria apenas um lembrete do que ela não tinha mais. Mas, fica vago o destino do Ele, e como lidou com isto, se tentou ajudá-la ou não, se tentou salvá-la de si mesma e, caso tenha tentado, o porquê de ele ter fracassado. O texto perturba por dar à personagem uma noção melhor do que lhe acontece a si mesma, ao mesmo tempo que poupa/impede o leitor de preencher mais algumas lacunas. Se a intensão era esta, conseguiu cumpri-la muito bem. 


Rodrigo Ferreira | 11-06-2008 17:50:17

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